Tuesday, February 10, 2015

Eutanásia I

"(...)  Acho que o medo me paralisa antes mesmo da resposta. No final das contas, meu diagnóstico prévio e equivocado é o que sustém minha dor e o pavor de assobiar desafinado.
Retive o sangue, porque doía sangrar. Mas doei tudo o que pude quando você precisou. Te daria tudo se não fosse a morte de mim mesma. 


Mas estou doente e morrendo aos poucos
(...)"

O Fim do Mundo

                   Cecília Meireles 

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.
Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...

Monday, February 2, 2015

Daemon

Parecia estar acordada, olhando pro tripé onde ficam minhas roupas usadas. Trouxe os olhos para as roupas de novo e vi o que parecia o contorno de mulher. 

Era sim, uma mulher. Com afeição jovem, rosto liso, pele negra, cabelos longos encaracolados, vestia uma saia grande, com os seios a mostra e lábios vermelhos, carnudos. Os peitos dela me davam vontade de lamber os meus.


Falei pra ela vir a minha cama. Falei, mas sem mexer os lábios.


Ela sorriu e tirou de si mesma um colar cheio de pingentes, com símbolos diversos. Só me lembro de alguns: uma estrela, uma lança... Vários pingentes, pareciam ser uns doze. Duas vezes a meia dúzia.

Ela veio até meu corpo, que estava ainda deitado, esparramado pela cama. Ela veio, mas sem mover seu corpo.

Estava em cima de mim,  quando estendeu o colar perto do meu pescoço disse para pegá-lo: 


É um presente..


Então veio uma voz, invandindo a minha mente e a imensidão que se criara entre o meio de nós duas: "bruxa! é bruxaria!"

A mulher chorou e foi sugada pela porta do quarto. que estava fechada. E eu, ainda imóvel, não pude ajudá-la.

Deitava estava, deitada fiquei.

Das frestas da porta, surgia uma nuvem espessa, nefasta. Senti algum medo, pelo risco de também ser succionada.

Peguei o colar - se o fiz, foi também sem movimentos - e quando minha mão tocou o sibilar prateado da estrela, minha alma voltou ao meu corpo, então levantei.

Abri os olhos, de novo em meu quarto. Não havia mulher colar ou pingente, apenas o aviso transladado pelo intra-ethos-subconsciente.

Era um recado de Daemon.