Wednesday, September 24, 2014

Crisântemo

“...gosto de andar descalço. Sapatos fechados (daqueles de executivos, de pseudo advogados, de aspirantes a qualquer coisa no serviço público) não deixam meus pés respirarem. É como usar camisas abotoadas até o pescoço. É como ter nos braços o peso de um relógio que me escraviza no tempo, para me fazer sentir o peso das horas, para que o tempo meça e limite tudo aquilo que meus braços suportam. Não. Não uso relógio. Não uso sapatos de aspirantes à classe média B. Não tenho intimidade com sequências de botões verticalizados, enfileirados, cada um com sua “casa” correspondente. Não tenho paciência. Abotoo até a metade, gola aberta, sem camisa, ponho óculos escuros, a corrente de ouro, reflito Leminski.

Por outro lado, às vezes sinto uma enorme necessidade de terra, de cheiro de terra, de pôr ‘sapatos de aspirantes a qualquer coisa’ só para tirá-los e andar descalço na terra úmida, sentir os pés afundarem cinco centímetros na lama do quintal de casa, correr na lama, escorregar, cair de bunda, o cachorro lambendo meu rosto, me jogar no rio de onde vem o peixe da janta, ver os peixes coloridos no raso, mas
não ser raso
e nem ser a todo tempo profundo
mas ser infinito, e sentir a terra, e sentir a água,
e sentir os rios de mim, e sentir,
e sentir e viver, e ver o sol, e ser os raios de sol,
e ser o calor, e ter braços de caber o mundo,
e ser eu o único mundo que me suporta e, os seres, meus horizontes de afetos ilimitados.”

Ana olhava pra mim meio que encabulada, exclamativa, como se muitas perguntas viessem a sua mente de uma única vez e ela não conseguisse alcançar nenhuma delas. Seus olhos percorriam novamente meu texto, tentando decifrá-lo, tentando me decifrar. Queria dizer pra ela que não, Ana, a cifra é tentativa eficiente, e às vezes ineficaz. A palavra não suporta a densidade da subjetividade; o importante é o interdito, assim como as entrelinhas e os silêncios. Acho que ela não entenderia. Finalmente, ela rompeu o silêncio.

- Mas Chris, em tua casa não tem quintal, tem?
- Não, mas eu gostaria que tivesse.
- Pois é. E que rio é esse? Nem tem rio por aqui!
- É, mas eu gostaria que tivesse também.
- É. E que história é essa de que o Leminski não abotoa camisa?
- Ah, tem uma foto na internet que ele tá com a camisa aberta quase que até a barriga, com uma flor na mão, óculos tipo aviador. Ta, não é uma camisa, mas no conjunto ele tá parecendo aquele cantor, o Falcão, sabe? Só que sem aqueles trecos que a gente nunca sabe se vieram de uma lojinha de artesanato ou de uma lojinha de R$1,99.
- Sei. Mas assim, não sei de onde tu tira essas coisas! E que preconceito com as pessoas do serviço público...                   quando foi isso?...             caramba!                Tu nem gosta de praia, Chris!...

Depois daquela resposta sobre o Leminski, pouco ouvi do que a Ana falava. Peguei de volta meu texto. E ela continuava falando e falando e falando interminavelmente. Pensei, li novamente, pensei de novo no que ela falou. Eu não sabia ver os fatos, ver as fotos, ver o que quer que fosse e dizer depois, literalmente, o que eu havia visto. Eu sempre queria acrescentar algo. Não para trazer perfeição, mas pra que a foto virasse cena, minha cena, e as pessoas fossem meus personagens, e tudo fosse um grande espetáculo. Lembro que, por um breve momento, Ana parou de falar. Eu ainda tinha o texto em minhas mãos. Muito breve.

- Chris, eu acho que entendi o que tem no texto, assim, de modo geral.
- É?
- Sim. Você quer tudo perto, tudo que te faz bem, todos os sentimentos. Mas, ao mesmo tempo, aquilo que te faz mal, tu afoga no mar, por isso que tu fala de profundidade e de rio. E no final tu fica feliz porque tem o quintal, tem o cachorro, tem a lama e tem o peixe, né, daí tu come...
- É, tem a ver com ser feliz, com afetos, sentimentos... Tu entende a diferença? De afeto, sentimento, contração, expansão e tal...?
- Entendo. É tipo “amar e ser amado”, “beijar e ser beijado”, “foder e se foder”, e tudo isso nos leva de volta ao amor, né?

Ana... Eu queria dizer a ela que a ideia não era essa, mas eu ri tanto com o que ela disse, que não tive como continuar a explicação. Nós sorrimos. Sorrisos largos, sorrisos sinceros, sorrisos de não caber nos lábios, de extravasar pelos olhos miúdos, covinhas no rosto, bochechas expandindo. Eu queria dizer pra Ana que era exatamente isso, só não sabia como. Mas não era necessário.


Gleise Almeida,
           
Alquimia Sensorial

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